
Ilustração: Foto de prateleiras de livros
Foi com alegria e ao mesmo tempo pesar que lemos o artigo abaixo, publicado no caderno Tendências e debates da Folha de São Paulo do dia 24 de janeiro. Nele o Secretario Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, comemora a reinauguração da biblioteca Mario de Andrade, a segunda maior do Brasil, com um acervo circulante por volta dos 350 mil títulos de livros à disposição dos usuários e com mais de 3.000.000 de itens em seu acervo total.
A alegria se manifesta na presença de tão significativo acervo de informação, conhecimento e cultura para o desfrute dos paulistanos, afinal, nada melhor do que a leitura para oxigenar idéias e pensamentos, para dar asas à imaginação, para fantasiar, criar, aprender e se divertir com o universo das letras e dos livros.
O pesar se manifesta na presença da mais completa e absoluta inacessibilidade às pessoas com deficiência visual, que por mais que estejamos em pleno Século XXI, dentro da sociedade do conhecimento, dentro do paradigma da Convenção da ONU pelos direitos das pessoas com deficiência, aprovada e ratificada com festa e pompa no Brasil em 2008, os nossos governantes ainda cometem a deselegância de inaugurar um espaço público que desrespeita, ignora, desdenha a existência de pessoas com deficiência, que simplesmente dão de ombros para o desenho universal.
Dentro da biblioteca Mario de Andrade, não existe um livro sequer adaptado para pessoas com deficiência visual, não existe uma ajuda técnica qualquer que permita o acesso aos livros impressos por parte dessas pessoas, enfim, para os administradores daquele espaço, as pessoas com deficiência visual simplesmente não existem.
Claro que esse descalabro não ocorre apenas na biblioteca Mario de Andrade, estamos apenas destacando esse fato devido a sua reinauguração nesse dia 25 de janeiro, mas em todas as outras bibliotecas da rede municipal, que possui mais de 100 bibliotecas, a presença de leitura para pessoas com deficiência visual é insignificante, para não dizer ridícula.
Fizemos uma pesquisa em todas as bibliotecas da rede municipal apurando o seguinte e macabro panorama: Existem mais de 3.000.000 de livros impressos a tinta versus 6.300 livros adaptados, entre braile, áudio e até mesmo as medievais fitas cassete. Se fizermos as contas, chegaremos a um percentual de 0,29% de livros para pessoas com deficiência visual em toda rede, ou seja, menos de meio por cento dos livros existentes na rede de bibliotecas da maior cidade do Brasil é acessível para pessoas com deficiência visual.
Se dissermos que isso é uma vergonha, uma abominação, estaremos sendo muito delicados com os nossos governantes, porque não se trata de vergonha, mas sim, de um crime, um crime hediondo e que é cometido silenciosa e diariamente em nossa cidade e em nosso país. Pessoas cegas, com baixa visão, tetraplégicas, disléxicas ou com outras deficiências incapacitantes para a leitura dos livros impressos têm o direito, na Capital de São Paulo, de acessar menos de meio por cento de tudo que existe disponível em nossas bibliotecas.
Deixamos aqui essa denúncia para que as nossas autoridades ligadas a cultura e a educação reflitam sobre até quando essa situação vai perdurar? Com toda tecnologia da informação existente, até quando milhões de pessoas por esse país inteiro, apenas por possuírem uma deficiência, vão continuar marginalizadas da leitura e do livro?
Para não nos acusarem de apenas reclamar e não apontar os caminhos, deixamos aqui duas sugestões que passam pelo poder Executivo e Legislativo, que podem dar um basta definitivo nessa situação criminosa:
1. Instalar imediatamente aparelhos (scanners inteligentes) que permitem a leitura de livros impressos de maneira autônoma e independente, por parte de pessoas com deficiência visual, em cada biblioteca e espaço de leitura espalhado por esse país. Isso fará com que tudo que já existe impresso possa ser acessado de maneira mais simples e instantânea;
2. Promulgar o mais rápido possível norma legal que obrigue que todos os livros comprados pelo poder público, para abastecimento de bibliotecas públicas, sejam obrigatoriamente acompanhados de sua versão acessível (formato texto digital). Essa medida fará com que os novos livros já cheguem às prateleiras das bibliotecas com acessibilidade desde sua origem, ou seja, a editora que o publicou.
O MOLLA – Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis estará sempre à disposição para cobrar e acima de tudo ajudar nessa tarefa.
Assim sendo, fiquem com o artigo…
A cidade e sua biblioteca
CARLOS AUGUSTO CALIL
A biblioteca Mário de Andrade, que reabre amanhã ao público, no aniversário da cidade de São Paulo, não cumpria bem suas vocações nos últimos anos
No aniversário da cidade de São Paulo, amanhã, a biblioteca Mário de Andrade reabre ao público, após obras de restauro e modernização.
O projeto dos arquitetos José Armênio Brito Cruz e Renata Semin introduziu um corredor transparente entre a entrada principal do edifício e a lateral da rua São Luís. A fachada austera ganhou predicado de leveza, que estimula o passante da Consolação a invejar o leitor interno, alheio à agitação da rua.
A biblioteca se apresenta em nova moldura: o projeto de paisagismo do arquiteto André Graziano renova a praça Dom José Gaspar.
Um cinturão verde abraça o edifício, o que permite o abrandamento da grade, diminuída e afastada do seu corpo. O busto de Mário de Andrade, da lavra de Bruno Giorgi, que ficou ao relento por 50 anos, foi convidado a entrar na sua casa.
Durante a obra, que custou à Prefeitura de São Paulo R$ 17 milhões, boa parte financiada pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), algumas surpresas foram encontradas. Lambris, estantes e livros infestados de brocas e cupins, ausência de estrutura no piso da circulante, necessidade de refazer a rede elétrica e de implantar sistema de prevenção de incêndios.
Mas a inesperada novidade foi o desbaratamento de uma quadrilha que, de dentro da biblioteca, furtava obras raras do seu acervo e de outras instituições.
Ao assumir a prefeitura, José Serra priorizou, na cultura, a recuperação da Mário de Andrade. E convidou para a difícil tarefa o advogado Luís Francisco da Silva Carvalho Filho, que a dirigiu entre 2005 e 2007. Ele reviu o projeto herdado da administração anterior, que previa a escavação de três andares subterrâneos e a instalação de um restaurante no terraço, e reabilitou a revista da biblioteca, hoje certamente entre as melhores do gênero.
O acervo de 3 milhões de itens começou a ser enfrentado. Investimentos da prefeitura se somaram a recursos originários de premiações em editais da Petrobras e do BNDES, o que possibilitou um tratamento de choque numa coleção empoeirada. Nesse campo, assim como no da catalogação, praticamente tudo precisa ser feito.
A biblioteca da cidade não é apenas local, nem mesmo de alcance exclusivamente municipal; é a segunda do país e, portanto, uma biblioteca nacional. É principalmente uma biblioteca de pesquisa, com uma notável coleção de obras raras, composta de livros, periódicos, mapas, e de preciosa iconografia.
Sua missão é atender ao contingente e ao permanente, ao leitor esporádico e ao pesquisador exigente. Nos últimos anos, não cumpria bem nem uma nem outra de suas vocações. Estava paralisada.
Desde 1957, pouco mais de dez anos depois da inauguração, sua torre atingia a capacidade de armazenamento. O desafio passou a ser a construção da segunda torre. Um prédio cedido pelo governo do Estado à prefeitura, atualmente em obras na rua Bráulio Gomes, cumprirá essa função.
A obra que o prefeito Kassab inaugura amanhã promoveu o retorno da biblioteca circulante ao prédio principal. Aberta desde julho de 2010, a circulante já foi visitada por 90 mil leitores, que emprestaram 21 mil volumes. A obra liberou parte da torre da biblioteca, o que lhe permite voltar a respirar.
Abandonada pela cidade no processo de evasão do centro que se iniciou há 40 anos, a biblioteca Mário de Andrade revive.
CARLOS AUGUSTO CALIL, 59, professor da ECA/USP, é secretário municipal de Cultura de São Paulo.